domingo, 26 de outubro de 2014

Covilhã - Os Ventos do Liberalismo/Os Ventos do Miguelismo III

O século XIX é um período de grandes transformações políticas, económicas e sociais. As ideias liberais fervilham por todo o mundo, opondo-se ao absolutismo vigente.
 Encontrámos no espólio e nas publicações de Luiz Fernando Carvalho Dias alguns documentos que nos elucidam que na Covilhã também se viveram momentos revolucionários e contra-revolucionários. Houve muito descontentamento, reuniões secretas da maçonaria ou doutras associações (“sociedades denominadas patrioticas”), prisões, exílios, mortes, quer de miguelistas, quer de liberais constitucionalistas ou cartistas. Que miguelistas? Que liberais?

Os documentos que estamos a apresentar sobre a Covilhã acompanham a guerra civil que os portugueses viveram ao longo de várias décadas do século XIX: a Vilafrancada miguelista em Maio de 1823; a Abrilada em Abril de 1824, cuja derrota obriga D. Miguel a abandonar o país; a morte do rei D. João VI em Março de 1826 e o início da Regência da Infanta Isabel Maria; a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro que se encontrava no Brasil, o 1º Imperador; a abdicação de D. Pedro em sua filha, Dona Maria da Glória, como Dona Maria II; o regresso de D. Miguel em 1828 e o país virado do avesso.


Fotografia de D. Miguel e seus correligionários (1)

 Todas estas divergências e dúvidas parecem ficar esclarecidas quando D. Miguel, ao regressar de Viena em 1828, é aclamado Rei absoluto. Contudo há focos de oposição por todo o país, desde a Covilhã, passando por Aveiro, Faro, Porto e Coimbra. Aqui aconteceu um facto insólito e triste, quando uma comitiva foi a Lisboa em nome da Universidade saudar o rei D. Miguel e foi apanhada perto de Condeixa por um grupo de estudantes, os Divodignos, pertencentes a uma sociedade secreta de cariz liberal. Mataram e feriram a tiro aqueles miguelistas. O governo miguelista vai ser fortemente repressivo e persecutório, originando julgamentos, mortes e muita emigração de liberais para Inglaterra e Açores. Será pertinente fazermos referência ao que podemos chamar miguelismo, uma espécie de sebastianismo negro?
“Venha cá, senhor malhado/Sente-se nesta cadeira/Grite: Viva D. Miguel!/Senão parto-lhe a caveira”, versos que podem ajudar a provar que o medo funcionava mesmo, o controlo existia de facto. A Igreja Católica apoiava verdadeiramente D. Miguel, “o arcanjo salvador” e por isso se falava em unanimidade na aceitação daquele rei; mas os muitos liberais apanhados pelo terror miguelista existem de facto, como alguns historiadores nos dizem:
Oliveira Martins apresenta números da repressão miguelista: nas prisões 26270; deportados para África 1600; execuções 37; julgamentos por contumácia 5000; emigrados 13700. Segundo Vítor Sá foi considerada culpada à roda de 15% da população. Há ainda outros números: cerca de 80000 famílias cujos bens foram confiscados.  
Esta situação abre em Portugal uma guerra civil entre absolutistas e liberais. Só a Convenção de Évora-Monte (1834) e o início do reinado de Dona Maria II procuram sanar a ferida imensa que grassa no País.

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Ilustração de Alfredo Roque Gameiro



Ill.mº e Ex.mº Senhor

            Hoje se está formalisando em camara um batalhão de voluntarios realistas do Senhor D. Miguel, para com o mais vivo zelo e amor debelar os perversos traidores que ousaram ofender os seus Direitos. Toda esta Vila e seu Distrito se acha animada do maior entusiasmo pela sagrada causa da Realeza.
            Consta-me que todos os habitantes da Província se acham animados do mesmo amor não poupando sacrificio algum que seja necessário fazer-se.
            Puz em Custódia o Dr. Manuel António Leal Preto de Lima Castelo Branco e seu filho Augusto do lugar do Dominguizo por se acharem com armas em casa e serem conhecidos por exaltados liberais, assim como o P.e Manuel Alves Padez, cura do mesmo lugar, José Pessoa Leão, solteiro, desta Vila e Manuel da Silva, soldado de Caçadores nº 3, que transitava sem passaporte e proferindo expressões suspeitosas.
            Não sei se V. Ex.ª foi entregue da minha participação com data de 13 do corrente mês em que detalhava o plano da conspiração que descobri, apreendendo seus autores, porquanto ainda não recebi disto certeza.
Deus guarde etc.

Covilhã, 24 de Maio de 1828.

Ill.mº Intendente
O Juiz de Fora
                                            Antonio Roberto de Araujo Queiroz

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Ilmº e Ex.mº Senhor


Tendo mandado repicar o sino da Camara pelo motivo da muito agradável notícia da Vitória que as tropas realistas alcançaram em Penafiel sobre os rebeldes, acontecia juntar-se imenso povo que correu às casas dos notados por liberais e lhes quebrou as vidraças sem que os voluntários e milicianos pudessem impedir este excesso, porem dizendo eu ao povo que estes procedimentos eram contrarios às Reais Intenções de El-Rei o Senhor D. Miguel, logo se absteve da sua continuação e hoje reina o maior socego.
Deus Guarde etc.

Covilhã 16 de Junho de 1828

Ill.mº e Ex.mº Snr. Intendente
                                                                       O Juiz de Fora
                                                     Antonio Roberto de Araujo Queiroz

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“Ill.mº e Ex.mo Senhor

            Participo a V. Ex.ª que em todo o meu distrito tem havido muito regozijo pelo inapreciável decreto de El Rei N. S. o Snr. D. Miguel I de um do corrente mez.
            Tenho continuado a fazer abrir a mala do correio desta vila afim de reter e abrir as cartas suspeitas.
            Deus guarde etc.

            Covilhã 12 de Julho de 1828

            Ill.mo e Ex.mo Snr. Intendente etc.

      O Juiz de Fora
António Roberto de Araujo Queiroz



Nota dos Editores - 1) Fotografia existente no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, sem nenhuma referência que nos elucide se efectivamente se trata de D. Miguel I ou de seu filho D. Miguel no exílio.

Fonte - Dias, Luiz Fernando Carvalho, "História dos Lanifícios, Documentos".

As Publicações do Blogue: 
Publicações no blogue sobre este assunto:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/09/covilha-os-ventos-do-liberalismoos.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-os-ventos-do-liberalismoos.html 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Covilhã - Centenário da Elevação da Covilhã a Cidade II


    Como hoje se comemora o aniversário de elevação da Covilhã a cidade, voltamos a apresentar o seguinte texto:
    "Hoje publicamos este texto escrito pelo autor para a pagela de apresentação dos selos postais comemorativos do 1º centenário da elevação da Covilhã a cidade. A importância do selo como meio de ligação entre pessoas e prova de pagamento de serviços postais nasceu em 1840 no Reino Unido e em Portugal em 1853, quando D. Maria II fez a reforma dos Correios. Podemos ainda considerar o selo um instrumento de cultura e uma fonte para os estudos históricos e até geográficos. Exemplificamos com estas estampilhas, cujos motivos estão ligados ao brasão e à vida industrial da cidade.    

Foi J. H. Fradesso da Silveira, emissário da Regeneração, na década de 1860-70, quem chamou a atenção do liberalismo para o curioso fenómeno social e económico da Covilhã, vila desde os alvores da nacionalidade, realenga por graça do Venturoso, notável por mercê de D. Sebastião, e terra com largo contributo espiritual, científico e heróico na gesta dos descobrimentos.
            Alheia aos bandos políticos do séc. XIX, fechada numa saudade teimosa pelo Rei D. Miguel I que aclamou duas vezes e a quem deveu, a favor do povo, o caducar dos privilégios daqueles que ao depois formaram a aristocracia dos comendadores, imagem covilhanense dos barões de Garrett, a Covilhã concentrou todas as suas forças de desenvolvimento na indústria de lanifícios, cujos alvores nela recuam ao último quartel do séc. XV, e, sempre que, em Portugal, estadistas de vanguarda como o Conde da Ericeira e o Marquês de Pombal, tentaram arremeter com a rotina e programar um surto industrial, vieram inspirar-se nas suas técnicas e no seu espírito inovador.
            Sem estradas nem caminhos-de-ferro para acompanhar a revolução industrial, nem por isso os então novos maquinismos ingleses e franceses deixaram de trabalhar na Covilhã, graças à energia dum povo cheio de vontade.
            Quando outros ficaram ensimesmados, constrangidos por caducas estruturas agrárias, a cidade dos Hermínios cedo se acostumou ao periódico e contínuo renovar das suas elites e a estimar, com sentido social, aquela eterna verdade, por vezes tão esquecida, de que foi pregoeiro no século XVI o nosso Frei Heitor Pinto: o Sol quando nasce é para todos.
            Daí as lutas clássicas desta cidade pela liberdade do comércio e da indústria, com larga projecção na documentação política dos sécs. XVII e XVIII, desde os documentos de Cortes aos processos inquisitoriais.
            Além de berço de Heitor Pinto, luminar do Renascimento português, glória das letras e da liberdade da Pátria; de Pêro da Covilhã, precursor do Gama; do judeu Vizinho, tradutor de Zacuto e cientista da Junta dos Matemáticos de D. João II; dos irmãos Faleiro, inspiradores, técnicos e colaboradores de Magalhães na primeira volta da circum-navegação do globo e de cinco mártires da fé de Cristo, todos seus filhos, a Covilhã notabilizou-se sobretudo como centro de trabalho e de iniciativa.
            De certo, a estas duas qualidades da sua gente ficou a dever a mercê de cidade, outorgada em 20 de Outubro de 1870 pelo Rei Popular (D. Luís), a velha vila de D. Sancho I, a minha terra muito amada.
                          
    (Outubro de 1970)   "       

sábado, 18 de outubro de 2014

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XLV

    
   Estamos no século XVIII, na Beira, comarca de Castelo Branco, onde é corregedor Gaspar de Sousa Barreto Ramires. (1) 
    Pouco ou nada sabíamos do autor destas “Notas que dão a conhecer o que são os pastos comuns nas terras da Comarca de Castelo Branco; a sua origem, o seu uzo e a sua aplicação”. A nossa pesquisa levou-nos a “O Albicastrense”, onde são reproduzidas umas “Efemérides Municipais” publicadas de 1936 a 1940 em jornais regionais. Algumas fazem referência ao corregedor em causa, autor deste texto não datado, embora em determinada altura se refira o ano de 1784. Nas "Efemérides" copiam-se e comentam-se actas de sessões da Câmara: Na de 22 de Julho de 1786 tecem-se elogios ao corregedor Barreto, que servia com “hum zelo pelo publico como certamente não mostrou outro algum Ministro”. Ora em 5 de Maio de 1790 já se considera que foi culpado da falta de paz e sossego na comarca, bem como de perturbações camarárias e por isso “fizeram a dita suplica” à Rainha para que escolhesse outro corregedor e não reconduzisse Gaspar de Souza Barreto Ramires no cargo. O corregedor Barreto Ramires perdeu a confiança do povo. Será que as suas ideias sobre campos abertos e pastos comuns eram consideradas retrógradas? Será que os grandes proprietários discordam e reagem mal às ideias defendidas pelo corregedor?

    Este texto que encontrámos no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias pareceu-nos digno de publicação:
- A teoria fisiocrática e o liberalismo económico espalham-se pela Europa, vindo a substituir o mercantilismo/proteccionismo.
- A discussão entre baldios, pastos comuns, campos abertos e campos fechados está na moda, é assunto do dia. Em Portugal começa-se a falar na necessidade de reformar os Forais e dela fazem parte estes temas.
- A industrialização, o desenvolvimento da agricultura e da pastorícia são assuntos focados.
- O papel da sociedade, o contraste entre ricos e pobres também é referido pelo autor.
- Embora a Covilhã não seja nomeada, várias vezes é lembrada a criação de gado, especialmente de ovelhas e cabras, principal riqueza da comarca.
- A importância das lãs para as fábricas da Beira em que se ocupam muitas pessoas. “… Faltarão por este modo as lãs para as fábricas da Beira em que se ocupão 70$000 pessoas, como se calculou pela Junta das Fabricas em uma consulta sobre o Fardamento das Tropas”…
- Muito curiosas são as consequências que o autor apresenta se for “dada liberdade para os senhores das terras, as circunvalarem de paredes”.
- No princípio do século XIX a reforma dos Forais vai integrar propostas contra os campos abertos.
Desenho que representa o sistema de exploração rural openfield,, campo aberto


Gravura que ilustra o sistema denominado enclosure, campo fechado

Leiamos:
 "Notas que dão a conhecer o que são os pastos comuns nas terras da Comarca de Castelo Branco; a sua origem, o seu uzo e a sua aplicação

Compreende a Comarca de Castelo Branco 79 concelhos. Entre estes há alguns que se compoem de 800 fogos, outros de 700, 600, 500, e outros de menos número. Todos os seus habitantes, vivem da cultura das terras, e creação dos gados.
               Como as terras dos limites destes concelhos são proporcionalmente extensas, e pela qualidade, e fraqueza do seu terreno não admitem cultura de todos os anos, estão estes distritos repartidos em folhas que se semeam alternativamente de trez em trez anos / só há diferença na Idanha Nova, onde há oito folhas, e delas se semeam duas, de quatro em quatro anos /. Emquanto as folhas não semeadas descansam praticão os respectivos moradores apascentar nelas gados, vacuns, égoas, ovelhas, cabras e porcos; e por este modo tirão das terras, emquanto se conservão pouzias um avultado interesse, e elas ao mesmo tempo recebem o beneficio de serem engrossadas pelos gados que as pastão.
Estas terras das folhas não são baldios cuja propriedade esteja no dominio dos concelhos, mas todas elas pertencem a particulares.
Estes proprietarios, nas suas terras, não teem mais que o direito de as semear e colher-lhe o fruto / que regularmente é centeio / no ano da folha.
Nos anos em que elas descansam e se destinão a pastos pertence aos concelhos e ao comum dos habitantes respectivos a servidão dominante de os vender e de os pastar.
Destes pastos se separa primeiramente a coitada dos bois. Esta coitada é um grande terreno que de longissimo tempo está assinalado na folha dos restolhos para nela pastarem todas as vacas e bois de arado e égoas de creação dos moradores do distrito gratuitamente por todo o ano. Esta coitada que há na maior parte dos 79 concelhos, é a origem da subsistencia daquele país e sem ela não poderá não só prosperar a lavoura mas nem ainda conservar-se. Daqueles lavradores bem poucos são os que podem sustentar os bois de arado por todo o ano; e por isso acabada a lavoura, eles os mandão para a coitada até que outra vez precisem deles. Na coitada, introduz cada um as vacas que pode adquirir. Na mesma há toiro comprado pelo comum. Ali fecundão e ali crião os bezerros. Destes apartão os que precizão para o arado e quando querem dinheiro para a ceifa e malha, que é serviço muito dispendioso, eles só o conseguem, vendendo alguns dos bois que crearão. Por este modo se animão todos a arrendar terras para cultivar, e não há homem de qualquer trato e oficio que não semeie uma terra, ajudado por aquelas comodidades.
E por este modo se crião na comarca imensos bois; pois na coitada de Castelo Branco se conservão regularmente mil rezes, e na de Idanha e seu termo 2$500; e assim à proporção no resto dos 79 concelhos. Depois se separa uma grande hervagem para o marchante trazer gado açougueiro, o qual, por esta concessão lhe dá a carne mais barata, o que interessa a todos.
   Do resto, que fica, depois de separada a coitada e o açougue, vendem os concelhos e o comum dos povos, estes pastos, divididos em terrenos a que chamão hervagens, (tendo cada uma seu nome e seu distrito / a credores (sic = creadores?) de ovelhas, preferindo as da propria terra, aos de fora. E esta fruição comprada só dura desde o S. Miguel até o S. Matias, e nos sete meses que decorrem de S. Matias até o S. Miguel, recobrão os habitantes a sua antiga fruição gratuita, tendo eles a faculdade de apascentar, nestes pastos, todos os seus gados.
   Esta servidão tem diversas origens, ambas imemoriaes. A que pertence à pastoria gratuita de todos os moradores é mais antiga; e a que autorisa os concelhos para a venda, é mais moderna, porque foi estabelecida por comum acordo dos antigos, de venderem por aqueles cinco meses os pastos que antecedentemente se pastavam gratuitamente em comum por todo o ano, para do seu produto se fazerem as despesas publicas dos concelhos, e povos, e evitar as fintas que para eles se fazião.
   Desta posse imemorial e desta convenção dos povos nos atesta o alvará de 1610, fazendo menção de muitos informes que se tomarão e pelas quais constou ser já imemorial a posse destas duas formas de economia, mandando por isso, derribar as paredes com as quaes Antão da Fonseca havia tapado tres grandes herdades que possuia no concelho de Oledo, termo de Idanha. São conformes os alvarás de 1616 e 1696, recomendando aos Corregedores a sua observancia, por ser indispensavel para a creação dos gados. Houve tambem provisões antecedentes aos anos de 1570 e 1608. Há acórdãos da Relação de 1599 e 1666, atestando desta unânime convenção dos povos, e da sua existencia, por tradição antiga, atestou o Senador Oliveira, que escreveu há mais de cento e trinta anos, no seu Tratado de Muner. Provisor. Cap. 6. in Add. nº 11. Temos pois reconhecida a posse immemorial e confirmada a convenção dos povos, por autoridade régia.
Alem da numerosa creação de bois, e cavalos, há em todos os concelhos imensa creação de ovelhas e cabras, o que constitue a principal riqueza da comarca. No ano de 1784, só no distrito de Castelo Branco fiz contar 22$500 ovelhas e 30000 cabras. Na Idanha e seu termo costumão regularmente crear-se 20$000 ovelhas e 40000 cabras, e respeitando a toda a comarca não pode calcular-se menor numero que o de 80$000 ovelhas e 20$000 cabras.
Aqueles pastos que os concelhos e o comum dos povos vendem em hasta publica, importão regularmente 60$000 mil cruzados. Da parte que pertence aos concelhos se tira a terça que chega a 10$000 cruzados. O resto dos concelhos e o que pertence ao comum dos povos se gasta nas despezas publicas a que os concelhos estão obrigados. Taes são a creação dos engeitados; a contribuição dos medicos de Coimbra; a do Secretario do Dezembargo do Paço, as propinas e apozentadorias dos ministros. Ordenados de medicos, cirurgiaens, Meirinhos, Alcaides, carcereiros, porteiros, e todos os mais que servem o publico, levas de prezos, reparos das cazas da Camara, calçadas, pontes, e mais obras publicas a que os povos são obrigados, em que tem principal parte as Igrejas. Transtornado este sistema, e dada a liberdade para os senhores das terras, as circumvalarem de paredes, se altera toda esta economia.
Não haverá coutada, e extingue-se o tezouro dos cultivadores. Diminuir-se há a numerosa creação dos bois, e bons cavalos, de que abunda a comarca. Não haverá hervagem para os gados açougueiros, e os povos comprarão a carne muito mais cara.
Faltará o dinheiro nos concelhos, e comum dos povos. Não haverá quem sirva o publico, e ou as terras correrão à sua ultima ruina, não se lhe fazendo os reparos que cooperão para a sua conservação ou os pobres habitantes sofrerão o vexame de serem fintados todos os anos para estas despezas, tendo eles a sua intenção fundada para não serem fintados. Seria então insuportavel o gravame dos pobres porque não pagando nestas fintas os fidalgos, os cavaleiros, os vereadores, os juizes, os soldados auxiliares, os privilegiados do tabaco, e da bula, vem a cair este encargo nos pobres que nada teem por onde paguem, e eles dezertarão de um paiz em que quatro poderosos os vão reduzir a miseravel condição de indigentes, estando elles dantes proporcionalmente abundantes.
Não haverá creação de ovelhas. Os povos se animão a esta numeroza creação porque vendida a hervagem de cinco mezes pelo concelho a um creador da terra, é ordinariamente comoda e tem os sete meses a franqueza gratuita da pastoria, porem tendo de comprar hervagem todo o ano, e pelo preço da ambição do senhorio, não haverá rebanho que compense esta imensa despeza e precisamente hão de dezemparar esta creação que os não interessa.
Estes rebanhos não podem sustentar-se sem larquezas o que é incompativel com a circunvalação das terras. Ainda que quizessem passar de umas tapadas para outras, tem tambem dificuladade regularmente invencivel. As tapadas serão de diversos donos, comprada uma, precisa o creador comprar duas, trez e mais, naquele mesmo distrito. Os donos vendem a necessidade do creador, ou abusão dela para lhe tirar um preço excessivo ou não podem vender, porque já venderão a outro.
É preciso unir a vontade de muitos, o que é um obstáculo à creação, que dificulta e desanima porque necessariamente lhe há-de faltar a pastagem, e perecer o gado.
Faltarão por este modo as lãs para as fábricas da Beira em que se ocupão 70$000 pessoas, como se calculou pela Junta das Fabricas em uma consulta sobre o Fardamento das Tropas. Faltarão os gados para engrossar as terras precisando-a tanto a sua magreza. Faltará esta grangearia, e imensas familias que sem possuir terras se sustentão e vivem com proporcional abundancia desta creação.
E faltará ao comum da comarca a parcela de 25:600$000 rs. que nela entrâo todos os anos, somente deste ramo da lã das ovelhas, feita a conta a 80$000 ovelhas, e a 10 velos por arroba, a 3.200, que é o preço mais inferior. Importancia esta a que nenhuns frutos poderião chegar ainda que as terras das folhas, se semeassem todos os anos. E isto sem falar no valor dos queijos, das carneiradas, e das chibarradas.
Diminuir-se à a população, que se conserva por meio desta comunião de pastos. Naquellas terras regularmente há tres ou quatro cazas que são senhores de todos os bens de raiz das folhas. Os mais vivem de terras que arrendam a estas casas, os quais as cultivão porque teem o recurso da coitada. Um pai de familias que tem quatro filhos, como não tem terras que lhes dar, reparte com eles o seu gado de vacas, ou ovellhas ou cabras. Cada filho continua a mesma grangearia do Pai, e suprem os gados, a prizão e apego ao paiz natal, que só costumão produzir os bens de raiz. Animão-se a esta continuação pela comodidade de não pagar a pastagem, ou de pagar bem pouco; porem, metidas as terras no pleno dominio dos Senhorios, e tendo então de pagar-lhe as rendas do seu capricho, necessariamente hão-de desmaiar estes novos creadores, e dezertar; porque em breve tempo será pouco o valor do seu gado para pagar ao senhorio.
Nesta conservação não se ofende o Direito da Propriedade dos Senhorios, antes pelo contrario, alterada a forma actual, se arrancará a propriedade da mão do comum para se dar aos particulares que não erão senhores dela. Esses particulares quando herdarão e quando comprarão as terras já foi com esta separação de pastos e por isso na compra eles derão menos preço; porque o vendedor se lhe vendeu o que possuia, que era o direito de semear, e colher no ano de folha. E dando se lhe agora o poder de circumvalar, e disfrutar os pastos, eles adquirem repentinamente um cabedal imenso que não comprarão, e tira-se ao comum a quem pertence a servidão dominante da pastoria, pela posse imemorial, pela convenção, e pela autoridade regia, que já ficão expostas.
A qualidade das terras não admite serem semeadas todos os anos. É necessario descansarem ao menos tres para darem centeio, e algumas esperão oito anos, doze e vinte. Esta certeza responde à lembrança de que as terras tapadas, produzindo todos os anos, darão mais abundancia de frutos, porque nem elas os darião; nem na comarca há falta de terras, nas respectivas folhas que alternativamente se semeião nem há falta de centeios, antes regularmente redundão; de sorte que se não fossem os moradores das comarcas de Tomar e Crato que os vão comprar à comarca de Castelo Branco, eles não terião valor. Se algumas terras são capazes de produzir de contra folha, elas se aproveitão pelos donos, e com este fim, quando eu servi de Juiz de Fora em Castelo Branco, coitava a folha dos alqueves, mais cedo, para que os donos pudessem cultivar as terras baixas, com melancias e feijoais de que elas poderião ser capazes, para conciliar a possivel cultura com a creação dos gados, devendo-se uns e outros frutos não só ao descanso das terras mas à multidão de gados que as engrossão: multidão e abundancia que faltarião todas as vezes que tapadas as terras se dificultasse a creação que deixo notada.
É a prova desta conclusão, o que observo nas terras da comarca, e muito principalmente na Idanha. Em todas elas há infinitas tapadas, nos Sesmos, ou Enxidos, nos quaes não é proibido tapar. Em Castelo Branco haverá 800 e em Idanha mais de 600; e nas folhas de Idanha tem a Caza de Geraldes 42 Tapadões, ou Latifundios.
Se o fim dos pretendentes das tapadas fosse o da maior abundancia de frutos, e semear as terras livremente, nós o poderiamos ver nestas tapadas; mas até o prezente, ainda não houve uma unica esperiencia desta frutificação. Eles ainda não as semearão de contra folha, antes só são semeadas quando a folha cai para aquele sitio. Os pastos destas tapadas são vendidos para creadores de gados e como este preço é mais abundante que o da sementeira de centeio, eles querem aumentar os seus rendimentos, fazendo mais tapadas; encobrindo a sua ambição com o pretexto da maior frutificação, quando o seu fim é o lucro das pastagens, e tirar ao comum o que este vende; porque metidas na sua mão, será o valor delas, seis vezes maior que na administração dos concelhos.
Esta mesma certeza responde à outra ideia de população que se finge aumentada, reduzindo as terras a cazaes. Há muitos anos que a Caza de Geraldes principiou a fazer tapadas cada uma das quais, pela sua grandeza, poderia bem sustentar um lavrador mas até hoje nem se lhe fez casas nem admitiu um só cazeiro. É pois o verdadeiro fim que se procura com estas tapadas subtrair a fruição da pastoria ao comum, e vendê-las a creadores Serranos, que as pagão seis vezes mais que os da terra; e com este exemplo, trabalhão todos os grandes possuidores de terras por adquirir uma semelhante conveniencia obtendo a liberdade de as tapar francamente.
As lembranças dos escritores e economistas que declamão contra os pastos comuns, não tem aplicação ao estado da Comarca de Castelo Branco.
Estes escritores supoem que as terras destes comuns, são terras incultas, e nunca semeadas como se vê em Robinet Diet. Univers. 1º Comunes = pag. 297; e em Rosier, no curso de Agricultura 1º Comunaiz Comunes = pag. 444; porem as terras da Comarca são semeadas todas, alternativamente, segundo a ordem das folhas e regularmente elas não teem aptidão de produzir, sem se reporem com o descanso.
O Mesmo Robinet diz, que ele não trata daqueles comuns, cujo produto engrossa a caixa publica, e já eu deixo notado que destes pastos é que sae a renda dos Concelhos,e a subsistencia do Comum das terras.
A declaração dos escritores funda se em ideias vagas, que não poderião realizar se na pratica. Por isso a Legislação do Rei da Prussia, conservou semelhantes servidões de pastoria: e é entre nós constante essa determinação, no Titulo das Sesmarias. § 14 e 10, na Lei de 30 de Março de 1623, e mais recente, na Lei de 13 de Outubro de 1770 § 1º assinando os Ilheos para pastos comuns da Ilha do Porto Santo, assentando que sem elles se não poderia remediar a sua decadencia.
A comparação das terras em que não há comuns com aquelas em que os há, principal argumento de Rozier, é ainda muito menos aplicavel à Comarca; porque ainda que se escolha uma igual extensão de terreno, na Comarca mais abundante de gados, para este se comparar com outra igual extensão de terreno na Comarca de Castelo Branco, dificultosamente haverá uma que iguale a numerosa creação do distrito de Castelo Branco e os nove concelhos do seu termo: Idanha Nova, e Velha, Proença, Zibreira, Salvaterra, Segura, e Rosmaninhal. Logo falhão todos os argumentos de congruencias e Regras gerais, que não são aplicaveis àquele terreno.
De todos estes factos se segue, que alterar o actual sistema de economia, dando liberdade aos donos das terras que as tapem, seria arruinar vinte mil familias que na comarca vivem da industria exposta, sem possuirem terras, ou bem poucas. Alteração que afectaria tão bem os Comuns das folhas da Vila de Niza; da do Crato, e dos Tarrejaes de Evora, e outras terras, onde eles se conservão em beneficio do publico. Seria privar os concelhos e o comum dos povos das suas rendas. Seria diminuir a creação dos Bois, e Vacas, egoas, e bons cavalos, ovelhas, cabras, e porcos. Seria privar o comum da sua propriedade dominante, e aplicá-la a quem não pertence.
Não haverá modo de compensar aos povos, a fecundidade que se lhe tirava. As terras, todas teem donos, e em consequencia não pode verificar se a lembrança dos economistas, de se repartirem pelos povos, sem fazer uma violencia aos donos dessas terras. A Lei das Sesmarias não lhe é aplicavel por que essas terras não são incultas ou desamparadas, mas elas se cultivão, guardada a ordem das folhas, segundo o uzo dos povos, como recomenda o § 8º do Titulo das sesmarias. Se no meio desta dificuldade se distribuissem essas terras; como a sua qualidade é tão fraca que delas não poderia esperar-se durar na produção, elas não interessarião os distribuidos nem seria então conforme ao § 14 e 10 dar-se de sesmaria umas terras que não produzindo, só servião de impedimento para a creação dos gados.
Seria finalmente impossivel compensar a riqueza que todos os anos advem à Comarca de 25:600$000 de Lãs: a riqueza do produto dos queijos, das carneiradas, e das chibatadas; e sobre tudo do imenso numero de Bois, e vacas, e gados cavalares e isto com uns tristes bagos de centeio que não chegarião para as rendas das terras dos donos, para todos os mais perecerem à fome. E seria engrossar 10 ou 12 com o que não comprarão nem herdarão para emagrecer o resto de todos os habitantes da comarca.
O Estado interessa mais em que haja muitos abastados que poucos ricos. É mais felis aquele em que os povos tem mais recursos, e meios para subsistir e se acrescentar. Então são os naturais mais pegados ao seu paiz por que aquelles que nada possuem, facilmente o dezamparão, e o desprezão. E seria o mayor escandalo do Estado, ver no meio de campos respectivamente ferteis morrer de indigencia os seus habitantes; ao mesmo passo que o uzo primitivo das terras; a posse longeva e a paternal providência dos Senhores Reis, proveo a sua subsistencia e fartura, fazendo os participantes da abundancia universal do seu terreno em que nascerão.

                           O Corregedor Gaspar de Souza Barreto Ramires"

Que boa caricatura sobre estes temas

Nota dos editores - 1) A nossa pesquisa levou-nos aos cargos de Gaspar Sousa Barreto Ramires registados no ANTT:
- Carta. Juiz de fora da cidade de Castelo Branco. Data 1781-03-22. Código de Referência PT/TT/RGM/E/0000/95137. Cota actual Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv.10,f.236
Carta. Corregedor da Comarca de Castelo Branco. Data 1784-08-23. Código de Referência PT/TT/RGM/E/0000/95139. Cota actual Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv.10,f.236
- Provisão. Juiz Conservador do Contracto do Tabaco na Comarca de Évora. Data 1794-06-07. Código de Referência PT/TT/RGM/E/0000/95142. Cota actual Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv.10,f.236 v

As Publicações do Blogue:
Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html

As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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sábado, 11 de outubro de 2014

Covilhã - Os Forais XVII


     Continuamos a publicar documentos do século XIX relacionados com a reforma dos Forais. Luiz Fernando Carvalho Dias deixou-nos vários estudos e algumas reflexões sobre o assunto.

 […] “A carta régia que em 1810 abriu caminho aos estudos da Reforma dos Forais começou a ser executada em 1812 e da Comissão faziam parte João António Salter, que presidia, Trigoso e mais dois canonistas, um dos quais João Pedro Ribeiro.
Informa Trigoso que a carta régia de inspiração de D. Rodrigo de Sousa Coutinho “não tinha outro fim mais que paliar a funesta impressão que haviam de fazer” os tratados com a Inglaterra, tão prejudiciais à nossa indústria, que o mesmo Ministro assinara então. Destinava-se ainda a procurar o meio de “fixar os dízimos, minorar ou alterar o sistema das jugadas, quartos e terços, fazer resgatáveis os foros e minorar ou suprimir os foraes” […]

     O liberalismo é um momento importante no sentido desta mudança, pois, como dizia Melo Freire substituir os forais era tão urgente como o Código Político. No entanto as opiniões divergiam, embora haja passos importantes que não podem ser esquecidos:
- Já do Rio de Janeiro, numa Carta Régia de 1810 dirigida ao clero, nobreza e povo fora ordenado aos governadores do Reino que tratassem dos meios “com que poderão minorar-se ou suprimir-se os forais, que são em algumas partes do Reino de um peso intolerável”.
- Em 1811, a Mesa do Desembargo do Paço expede ordens para que os corregedores das comarcas averiguem esse peso dos forais.
- Em 17 de Outubro de 1812 a Regência cria a Comissão para Exame dos Forais e Melhoramentos da Agricultura.
- Em 1815, D. João volta a querer que se investigue sobre “os inconvenientes que da antiga legislação dos forais provinham ao bem e aumento da agricultura”.
- É já nas Cortes Constituintes, em 1822, que é promulgada a chamada “redução dos forais”.
- A contra-revolução miguelista, em 1824, revoga as anteriores medidas.
- Marco essencial é a reforma de Mouzinho da Silveira (1832) em que desaparecem os foros, censos, rações e toda a qualidade de prestações sobre bens nacionais ou provenientes da coroa, impostos por foral ou contrato enfitêutico. Na verdade o governo de D. Pedro pretendia fazer uma revolução da agricultura e social que atingisse a nobreza, o clero, os municípios, os desembargadores, os donatários, tomando medidas como: extinção dos morgadios e vínculos que não ultrapassassem os 200000 réis de rendimento líquido anual; supressão das sisas sobre transacções; extinção dos dízimos; nacionalização dos bens da Coroa e sua venda em hasta pública.
- A reforma continua pelo século XIX.

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Sobre o direito e a servidão dos pastos comuns. Direito de propriedade

Senhor

            Está hoje demonstrado por escritores e economicos que o direito e a servidão dos pastos comuns nas terras dos particulares (jus compascui, servitus compascui) e a devassidão dos prédios que dá lugar ao dito direito e servidão são um obstáculo fortissimo para o progresso da Agricultura.
            A Ordenação do reino no Liv. 5, Tit. 89 reconhecendo o principio de que cada um deve ser senhor livremente do que é seu, autoriza apesar disso este direito e servidão, emquanto proíbe debaixo de graves penas a pastagem de gados nas terras cultivadas «no tempo em que são coimeiras pelas posturas das camaras».
            Contudo a lei parece que reconheceu que isto era um mal para a agricultura e que ofendia em geral o direito de propriedade; quando por uma parte coibe os abusos que os senhores das terras e poderosos podiam cometer mandando pastar os seus gados nos lugares de que são senhores (§ 2º do dito Tit.) e quando pela outra concede aos Dezembargadores o privilegio de ninguem deixar entrar os gados para pastarem nas terras deles (Ord. do Liv. 2, Tit. 59, § 7º). Alem disto não há uma lei geral que proiba aos proprietários taparem os seus predios, antes pelo contrario a lei de 9 de Julho de 1773 no § 12º (o qual não foi suspenso pelo Decr. de 17 de Julho de 1778) manda em regra vedar e abolir todos os caminhos e atravessadouros particulares feitos pelas propriedades tambem particulares; e o Alvará de 27 de Novº de 1804, § 7º permite as tapadas nos terrenos aí declarados.
            Assim a nossa Ordenação considera sem dúvida que o direito ou servidão de que se fala produziria ao menos a vantagem de conservação e aumento dos gados; e por isso tolerou e regulou o uso dos pastos comuns nos predios dos particulares, e ainda apesar do prejuizo que daqui pudesse resultar à agricultura.
            A mesma legislação fundada no mesmo principio vemos ainda propagada até os nossos tempos; e daqui vem os Alvarás, Provisões e Julgados que transcreve ou alega Domingos Nunes d’Oliveira no seu Discurso Jurídico sobre os pastos comuns; pelos quaes se concedeu a alguns conventos poderem mandar pastar os gados nas terras dos particulares ou se proibiu extraordinariamente a estes fazerem tapumes nos seus predios ou finalmente se concedeu às Camaras de alguns distritos a faculdade de venderem em comum as pastagens dos predios particulares a que chamam ervagens.
            Mas se o bem da Agricultura, se o interesse, bem entendido, dos proprietários, se a mesma creação dos gados que parece ter motivado as referidas providencias e restrições, pedirem ao contrario que se tire o direito e a servidão dos pastos comuns desta natureza, e se promova que todos fechem os seus predios, usando para isso da liberdade que a Lei geral lhes permite; segue-se que com razão devem ser reformadas a Ordenação e Leis posteriores que se fundam em princípios então reconhecidos por verdadeiros e que hoje se acham falsos à vista dos progressos que tem tido a sciencia da Agricultura.
            Os agrónomos modernos, principalmente os ingleses, tem hoje tratado com grande felicidade este assunto: entre estes Artur Young se propôs com decidida superioridade em varios lugares das suas obras de Agricultura a combater os antigos prejuizos dos pastos comuns e terrenos abertos com todos os argumentos que subministra uma teoria luminosa e uma sorte de experiencias bem entendidas. Tambem já houve entre nós quem dirigisse a este objecto os seus estudos e meditações, escrevendo sobre ele uma Memoria que há poucos meses leu na Academia R. das Sciencias de Lisboa, e que actualmente se imprime no Tom. V das Memorias Economicas. (1) À vista disto não duvidou a Comissão fazer seus os alheios trabalhos e propor a V.A.R. os resultados deles, despidos de todo o aparato scientifico e aplicado ao uso e legislação do nosso país. A este fim se dirigem as observações seguintes.
            1) Em primeiro lugar é hoje universalmente reconhecido que não pode haver boa Agricultura em quanto não houver colheitas intercalares e variadas: é reconhecido pelos nossos mesmos agricultores que uma terra à qual se lança por anos sucessivos uma mesma qualidade de semente, causa e apenas pode dar uma seara medíocre e mal vingada; daqui vem o sistema dos alqueives que está tanto em uso entre nós, e que evitando aquele inconveniente, produz outro mui considerável qual é o de não terem as terras durante esse tempo produção alguma; e daqui vem entre as Nações mais industriosas e menos atrasadas em cultura o sistema da periódica e sucessiva sementeira de varias e diversas plantas num mesmo terreno, a que se pode chamar afolhamentos.
            Se os povos mais bem instruídos nos seus interesses adoptaram este método da cultura, o qual lhes fará tirar da terra que habitam o maior lucro possível, é evidente que neste caso se deve absolutamente renunciar ao Direito e servidão dos pastos comuns e às restrições da liberdade de tapar, pois que num terreno dividido em várais folhas em cada uma das quais se lance diversa semente, é forçoso que em qualquer mês do anno estejam as plantas em diferente estado de vegetação: e assim não haverá tempo em que se possa permitir o uso destes pastos comuns nos prédios particulares. Mas ainda mesmo que os povos não conheçam estas vantagens, em quanto subsistir e for tolerado um tal uso; não poderá um agricultor mais instruído que os seus vizinhos afastar-se daquele género de cultura que vê entre eles praticado; por isso que se lançasse à terra outras sementes intercalares que nascessem e crescessem em diverso tempo, i. e., nos meses não coimeiros, tinhão a certeza de não poder colher o fruto das suas fadigas e de ver este estragado e comido dos rebanhos alheios.
            2º) Além disso o milho entre nós é uma sementeira intercalar; ele conserva-se na terra muito tempo depois de se ter segado o trigo e a cevada, e não se colhe senão por todo o mês de Setembro, e ainda de Outubro. Isto produz um segundo inconveniente a respeito dos pastos comuns de que se fala; pois que os proprietários do milho não podem deixar de sofrer um grande prejuizo dando passagem aos gados que vão pastar nos vizinhos e já desocupados terrenos.
            3º) Nem só a passagem do gado estraga as searas quando estas crescem acima da terra, tambem lhes é nociva quando precede ou se segue imediatamente à sementeira porque calca o terreno e por isso muitas vezes ou duplica o trabalho ao Lavrador que se vê obrigado a fazer segunda lavoura ou faz morrer a planta à nascença, ou finalmente a mortifica e não deixa bem vingar.
            4º) Já se se considera a cultura das árvores que de dia em dia se faz mais necessaria no nosso Reino facilmente se conhecerá por uma parte que ela não pode florescer nos terrenos abertos e sujeitos ao direito ou servidão dos pastos pelo grande estrago que os gados fazem nas mesmas arvores em quanto são novas e pela outra, que os valados que fechassem os terrenos além de oferecerem muitas outras vantagens, ofereciam ainda a de fornecer aos proprietários abundancia de lenha para queimarem.
            Mas emquanto a creação dos gados (que parece ter sido a principal causa da permissão dos pastos comuns e da restrição da liberdade de fechar os terrenos) deixando as observações práticas mui importantes que a este respeito produziu Domingos Nunes d’Oliveira na obra citada; basta só a razão para mostrar que aquele fim se poderia facilmente obter por um sistema inteiramente oposto. É evidente que não há gados sem pastos ou estes sejam naturais ou artificiais, que alem de servirem para o sustento dos gados deverião tambem servir de fazer descansar as terras e de as preparar para a futura sementeira de grãos, ninguem por certo seria tão louco que cuidasse em havê-los nos terrenos abertos e tendo os seus vizinhos o direito de se utilizarem deles. Os mesmos pastos naturaes duram mais tempo e oferecem melhor alimento aos gados, uma vez que sejam economica e regularmente distribuídos porque um rebanho lançado numa terra a granel corre-a toda dentro de pouco tempo e além de comer o que lhe é necessário destrói aquilo que um rebanho muito maior poderia comer. Alem de que a herva assim pisada e repisada e por isso com uma vegetação sem cessar interrompida, vai insensivelmente perecendo a ponto de secar muitas vezes de todo, e de não poder já servir de utilidade alguma.
            5º) É verdade que a Provincia do Alentejo abunda em gados creados em terrenos abertos e devassados, mas tambem na Provincia do Alentejo abunda mais que em nenhuma outra o uso ou abuso dos Alqueives o qual faz que o lavrador não possa crear muito gado sem que ao mesmo tempo experimente uma considerável falta de colheita no seu terreno; e esta pobreza é maior que a riqueza que ela vem a produzir. Com efeito já o Alvará de 20 de Junho de 1774 (confirmado e declarado pelo de 27 de Novembro de 1804) conheceu e acautelou o grande abuso que se havia introduzido nesta Provincia de estragarem os proprietários um grande número de herdades nas mãos de poucos creadores para ficarem de cavalaria e servirem de pastos aos rebanhos; donde se seguia não se poderem lavrar estes terrenos, esterilizarem-se os frutos de primeira necessidade e despovoar-se toda a Provincia.
            6º) Nem só os terrenos fechados e não devassados criam mais pastos que sustentem um maior numero de gado; tambem os produzem de melhor qualidade e que influe muito no melhoramento dos rebanhos. Quando em Inglaterra estava generalizado o uso dos pastos comuns, sucedia que os mais inteligentes creadores não se aproveitavam destes pastos e lhes preferiam os particulares fechados, que contudo pagavão por alto preço; e isto porque a experiencia os tinha ensinado que os rebanhos assim creados não só valiam mais que os outros o preço que o creador havia dado pelos pastos mas ainda um excedente que ficava inteiramente livre para o mesmo creador.
            Fica, pois, demonstrado que o uso dos pastos comuns nas terras dos particulares longe de favorecer a creação dos gados, a impede e dificulta; e que os terrenos fechados produzem alem de outras grandes vantagens que é escusado referir, a de fazer prosperar geralmente a agricultura, segurando ao menos a cada individuo a liberdade de semear nas suas terras o que bem lhe aprouver com a certeza de o colher a de estabelecer prados artificiais para a creação e sustento dos seus gados ou dos alheios, e finalmente a de distribuir com economia e boa ordem o pasto precisamente necessario para cada rebanho.
            É verdade que nem todos teem meios ou faculdades de taparem os seus prédios; é verdade que estes sendo às vezes duma muito grande extensão não podem absolutamente ser tapados; há tambem muitos creadores que não teem terreno algum seu donde tirem pastos para os seus gados; ultimamente na actual divisão dos prédios em partes muito pequenas, p+ertencentes a diversos proprietários, nem é facil fazerem-se estas tapadas, as quais roubariam muito chão à agricultura; nem é possível que cada um use dos pastos das suas terras sem dano dos vizinhos.
            Porem nada disto destroi as razões que ficam alegadas nem tão pouco oferece outras tantas excepções à regra estabelecida. 1º) porque um proprietário que não pode fechar o seu prédio por não ter meios para isso, ou por este ser excessivamente grande, pode ao menos guardá-lo; e assim como guarda os outros frutos que cultiva, assim tambem guardaria os pastos que a terra produziu se visse que daí tirava interesse, e não tivesse contra si o chamado direito dos pastos comuns. 2º) Não se pode conceber qual seja a utilidade que se tira de haver creadores que não tenham absolutamente de seu mais que o curral onde guardam os gados e que suponham em si o direito de os sustentarem à custa dos seus vizinhos. Isto seria separar duas cousas que devem ser absolutamente conexas entre si quaes são a creação dos gados e a produção dos frutos e preferir o interesse de poucos individuos ao bem geral dos povos e da agricultura. 3º) Se nas divisões dos terrenos em partes muto pequenass é quasi inevitavel o seu uso comum dos pastos, isto só prova quão contrarias sejam essas divisões à boa cultura, assim como são contrarias a outros interesses bem entendidos dos Povos e do Estado. Evitando-se tão abusivas desmembrações de pequenos prédios, fica evidente que um proprietario que tenha pastos sobejos para o seu gado e outro que os não tenha suficientes, se podem com razão reputar no estado daqueles proprietarios que ou teem outros frutos do sobejo e assim os vendem aos seus vizinhos ou não teem os necessarios e por isso são obrigados a comprá-los.
            Portanto parece muito conveniente a esta Comissão que V.A.R. seja servido declarar por uma Lei 1º) que em todo o tempo do ano seja respeitado o direito da propriedade dos terrenos, e proibido que os gados possam pastar nos predios alheios, contra vontade de seus donos: ficam obrigados os que contrariamente a esta disposição a pagar o dano feito e as coimas segundo as posturas das Camaras, ou ainda sujeitos a outras penas mais graves segundo a letra e o espirito da Ordenação do Liv. 5º, Tit. 87 in princip. e § 1º e 3º: do que os juizes devem tirar devassa todos os anos nos termos do Alvará de 12 de Setembro de 1750. 2º) Que fica salvo a qualquer individuo tapar o seu predio como bem lhe aprouver; para o que se deverião não só revogar algumas leis particulares que restringem esta natural liberdade mas tirar os obstáculos a que ela está sujeita; pondo-se para este fim inteira e rigorosa observancia os §§ 11 e 12 da Lei de 9 de Julho de 1773 que proibirão em regra os caminhos e atravessadouros nas fazendas dos particulares, e o dominio de arvores em propriedades alheias. 3º) Que a disposição do Alvará de 27 de Novembro de 1804 nos §§ 7º e 8º se deva entender estendida a todas as Provincias do Reino, e a quaesquer predios onde seus donos possam ou requeiram fazer tapadas as quais sejam permitidas ainda nos distritos em que está em uso o direito chamado dos pastos comuns. Naquelas tapadas porem em que por algum titulo ou contrato sendo terreno de um dono, a hervagem ou pastos forem de outro, seja permitida a adjudicação destes ao proprietario do terreno, pagando-se pelo seu justo preço; semelhantemente ao que estabeleceu o citado § 11º da Lei de 9 de Julho de 1773 a respeito da adjudicação das arvores.
            E como outros grandes obstaculos que impedem fechar e tapar os predios sejam 1º) as pequenas propriedades encravadas ou contíguas a Quintas ou Fazendas de muito maior consideração. 2º) a actual forma de divisão das Lizírias e outros grandes campos em muitos hastins ou aguilhadas, das quaes um proprietario possue duas ou mais não contíguas mas mantendo-se de permeio outras alheias; 3º) as outras especies de divisões e subdivisões infinitamente pequenas de pequenos predios entre pessoas duma mesma família. 4º) os diferentes quinhões que numa mesma herdade teem os chamados colonos parciários: parece em razão disto à Comissão que seria muito conveniente à prosperidade da Agricultura que V.A.R. fosse servido sujeitar para todo o Reino a observância da Lei de 9 de Julho de 1733 nos §§ 4º, 7º, 8º, 9º, 10º, 14º e o Alvará de 14 de Outubro do mesmo ano; os quaes parágrafos forão suspensos pelo Decreto de 17 de Julho de 1778 até à publicação do novo Código.

                        Lisboa, 16 de Dezembro de 1812.  

Nota: (1) É feita pelo Sócio Sebastião Francisco Mendo Trigoso. 
Fonte – BNL (BNP), Reservados

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