segunda-feira, 22 de julho de 2013

Covilhã - A Alcaidaria VI

     Continuamos a publicar os documentos sobre a alcaidaria da Covilhã. Procuramos seguir uma ordem cronológica.
     Hoje apresentamos D. Cristóvão de Castro, filho natural do alcaide-mor D. Rodrigo de Castro. D. Cristóvão, que tem uma rua na Covilhã, (1) nasceu nesta cidade em data incerta, terá sido embaixador ao Papa Alexandre VI, Deão da Capela Real, provido em Igrejas do Padroado Real, Capelão-mor da Infanta Dona Maria Manuela e em 1550 confirmado e sagrado Bispo da Guarda. Faleceu em 1552 e está sepultado na Covilhã, na Igreja de S. Francisco, na Capela dos Castros. (2)
     Como Bispo da Guarda visitou quase todo o Bispado, produziu alguns diplomas e ocupou-se com o início da construção do extraordinário retábulo maneirista que se deve a João de Ruão e se encontra na Sé da Guarda.

O Retábulo - Sé da Guarda

     É como capelão-mor da princesa Dona Maria Manuela, filha de D. João III e esposa do príncipe Filipe, futuro rei de Espanha e de Portugal que o encontramos em Valladolid, donde escreveu várias cartas ao rei D. João III. Alguns exemplos, cujo âmbito e data são os seguintes:
- “Dando parte a D. João III da grande necessidade em que se achava a casa da Princesa...”, 25-10-1544. (3)
- “Dando parte a D. João III dar-se por certo que com a nova paz viria a resolução do Imperador sobre o assento da Casa da Princesa e aumento de renda que tanto necessitava, que precisava de Donas e camareira-mor e que seria bom nomear-se embaixador para aquela corte”, 26-10-1544. (4)
- “Dando parte a D. João III chegar o núncio a Valladolid ao qual deu a carta do mesmo senhor, participando-lhe a ordem que tinha para o suspender na mesma vila...”, 8-11-1544. (5)
- “Dando parte a D. João III da partida do príncipe e da boa saúde da princesa...”, 8-11-1544.(6)
     Encontrámos no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias a cópia de uma outra carta, datada de 29 de Abril de 1544, que não vimos relacionada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT - digitarq.dgarq.gov.pt). Por comparação com as da Torre do Tombo deduzimos que a Carta seja dirigida a D. João III sobre a sua filha Maria Manuela, de 17 anos, casada de 1543 a 1545 com Filipe (futuro Filipe I de Portugal).Vamos publicar esta cópia que nos traz muitas achegas sobre estes casamentos diplomáticos e sobre os séquitos que acompanharam as princesas portuguesas pela Europa fora. 

Dona Maria Manuela (1527-1545)


Carta de D. Christovam de Castro

Senhor Deus sabe que desejo em cabo servir bem a V. A. e a princeza sua Filha e que procurei por isso sempre, quanto possível me foy, desde que S. A. partio de Lisboa, athe ho presente com muita continuação e tanto fervor e gosto que maior não pode ser, por que tinha entendido e conhecido fazer nisso muito ho que devo, e som obrigado, e como ho meu principal intento hé servir V. A. e a isso vim a Castela sem ter respeito a outra cousa alguma sinto muito, coando o não posso fazer e se me offerecem impedimentos pera isso, e tambem sinto igualmente, coando vejo acontecer a outrem ho mesmo, e deixar de fazer seu Officio, como deve per algum descuido, porque creio resultar tudo em dano e perjuizo da princeza, e do que compete ao serviço de V. A.  e porque eu enxerguei algumas faltas no caminho athe chegar aqui a princeza e aqui depois de chegada pelas quais a princeza não era tambê servida, como parecia razão, e cobrava indo já fama de descuidada em algumas cousas que o meu juízo era grande mal e doendo-me a mim isto muito, ho escrevi logo a quem ho devesse a V. A. para que provesse de remediar com tempo porcoanto eu receava que não ho fazendo mui cedo, averia mudanças novas nesta caza, por levarem as couzas caminho disso, e não me atrevo entoncez dar a culpa delas aquem eu via que a tinha por alguus respeitos avendo, que abastava falar na mudança da caza, a coal se não podia entender na propria pessoa da princeza que nehua via.
Agora vendo a pouca emênda que ha nas cousas, e temendo empeorarem, me pareceo necessario e obrigação muy devida, pois ma aqui acho, tornalo a fazer saber a V. A. com alguma mais decraração, porque não he já tempo doutra cousa, nem se pode tanto sofrer e dissimular e também lhe darei conta dalgumas cosaS, que me a mim tem sucedido, não per modo de queixume nem com Zello de mal fazer, se não pera que V.A: proveja em tudo como vir, que mais compre a seu Serviço e da Princeza pela muy grande necessidade que disso ha, antes peço muito por mercê a V.A. e pelo amor de Deos, que pois meu motivo principal é servido não redunde um dano doutrem, e em prejuízo de minha consciência , e honra per nehua via, que possa ser, e que V.A. me faça tamanha mercê q esta minha carta, que com muita difficuldade ousei fiar de Pero de Souza com coanto he pessoa pera isso, e muito mais que V. A. haja por seu serviço, não pasar ela a poder d’outrem e em confiança de ser asim, e de me levar em conta coaisquer deffeitos, e atrevimentos, que nela por mim passarem, porque lho merece a muy grande affeição e devação, que a seu serviço tenho.
Digo, Senhor, primeiramente, que cuidando muitas vezes  nos muitos e grandes descuidos, que por nós passam cada dia no Serviço da princeza, para o qual V.A. nos escolheo, me corro envergonhado disso tanto, como se todos carregassem sobre mim soo, e não posso entender como isto he, ou possa ser, porque craro estaa a grande obrigação que por isso temos a V. A. pela qual ainda que todas as outras cessassem, o haviamos de servir muito melhor, do que o fazemos, senão que não somos pera isso e esta é a verdade, e me parece a melhor desculpa que podemos dar por nós. per outra parte, Senhor, me espanto muito, que pera huma cousa tão importante, e de tanto peso, como he o serviço da princeza de Castela, huma só Filha de V. A. e dele muito querida, segunda fama, e as obras demonstram, tendo a sempre distinada pera este Estado, e vida V. A. casi á ora de sua partida lhe ouvesse de dar de novo todos seus officiaes, e asym os mandasse boçais, sem ver, ou saber, primeiro quê mandava com sua Filha.
           Eu escrevy a V. A. se me bem lembro nesta derradeira carta, que a Princeza se tina muito emêdado dos seus vagares, e que sua caza andava posta em muita mais ordem, do que sohia, e asy era verdade. Depois tornarã todas as cousas, ou cazi ao que sohião, e algumas parece que empeorarão, a culpa disso sem duvida não he da Princeza, porq a sua idade a desculpa, e ainda prometo a V. A. que achará   por verdade, que é dina de muito louvor, por muitas cousas bem feitas, que faz, e ordem de seo proprio moto, e bom natural, mas nós outros sem officiaes somos os culpados em tudo, e os que a infamamos de descuidada e vagarosa e eu, como novo, e ignorante em meu officio faço nelle e no que a elle toca mil erros. Ho mordomo mor que é o da caza, contra cuja fidalguia, bondade, limpeza e honestidade seria mui grande erro e pecado mortal ousar ninguem falar palavra, antes sem duvida e por estas cousas, que nele há em muita abastanza, e pelo muito trabalho que tem sofrido, e sofre é merecedor de toda a mercê, e fará outros muitos, porque sendo seu oficio de muita autoridade e gravidade, faz-se com todos tão familiar, que se faz desistimar, e os criados da princeza ficam por isso desordenados, e sua Caza desautorizada, e com a sua muita brandura, e sofrimento não he dele repreender cousa alguma, sendo necessario repreender muitas, e emendálas, e lembrar outras onde vir ser necessario, não uma mas muitas vezes sem ter disso pejo algum, que se ele o não fizer, quem o fará, e sobre todas as cousas havia de ser huma sobre rolda pois hy à disso necessidade, de sorte que eu entenda que ele olha por mim, e attenta por como sirvo meu officio, e cada um dos outros cuide o mesmo por si, porque uns com vergonha outros com receio, fação todos o que devem, e são obrigados, e pode ser que se ele tivera os Spiritos mais espertos, e huma pouca de mais colera, que muitos descuidos e mais recados são passados que se poderão escusar.
          Ho veador é muito bom homem pera não apartar, a meu entender, nenhuma couza da fazenda da Princeza, em que ele tiver poder por razão de seu ofício, mas antes aproveitará quanto poder, he um pouco descuidado assim nas couzas da cozinha como da meza, pelo coal, algumas vezes a princeza não he bem servida, vem tarde ao Paço, sendo necessário vir cedo pera o acompanhar, e poer em ordem as couzas: hé ás vezes pouco sofrido e supito em castigar sem ter respeito ao lugar e às pessoas. Dia de Entrudo, porque a Princeza, por ser tarde pera ouvir missa, se não acabou de vestir, mandou que se cerrassem as janelas, e despejasse a caza: acabando de a ouvir, recolheo-se e tanto que voltou as costas, hum moço da capela, acodio a tirar huu pano da cortina, que estava à porta, como he costume fazer-se, por Se não tratar mal dos que se acodem pera entrar, e o veador, cuidando que a Princeza estava ainda hy, deo lhe com a Cana duas ou trez vezes d’encontro, e porque o moço lhe disse, que bem sabia ho que fazia, e dizia-lho porque a princeza era já ida, virou o vedor a cana, que he de Bengala, estando a cruz ainda alevantada, e o mordomo mor, e eu junto dele, e deu ao moço trez ou quatro pancadas com ela, boas, de que eu fiquei frio, e contudo quiz dissimular, e passando pera dentro lhe disse que olhasse não incorresse em alguma excomunhão, acabando eu de dizer isto, tornou de novo ao moço e dera até o matar, se eu não mandara ao moço que se tirasse de diante dele, coando vi tanta demazia disse-lhe que era aquilo mui mal feito, e que eu nunca vira outra tal. ho Mordomo mor encapotou-se com uma capa, que lhe não parecia o rostro, e sem falar palavra foi-se para hum canto da Caza, eu fiquei tão agastado e anojado, como era razão que ficasse e confesso a V. A. que com algumas refregas e tentações de não servir mais este officio.
          E asy no fim da coresma estando a Princeza às completas na tribuna e a Duqueza de Alva com ela, e outras Donas, mandou o veador pelo porteiro da capela chamar um Reposteiro, e porque não veo desceu abaixo, e logo ao pé da escada topou com um, que foi criado de minha irmãa, q se lhe vinha desculpar, e dizer que não era a semana sua, e que tinha a seu carrego a almofada da Duqueza, de que havia de dar conta, mas o veador, sem lhe receber desculpa, lhe deo com a cana, tantas e tamanhas pancadas que ao arroído delas e brados do rezposteiro (sic) acudi eu de cima a lho tolher, não sabendo quem ele era, e quando cheguei estava já todo escalavrado pela cabeça, e esteve até agora em cura, que já vai servir  por lho eu mandar, que sua vontade era tornar logo a Portugal.
          Esta estada na tribuna ordinariamente do veador, enquanto a Princeza ouve os officios divinos, me parece que se devia escusar, porque dali quer mandar todas as cousas, que à pera fazer na Caza asi da cozinha como da Menza, e nunca fazem Reposteiro, e moços da Camara, se não ir e vir a ele com Recados e a Tribuna é mui pequena, e está sempre cheia de Damas, e de Donas, e o Principe defronte, afora outros inconvenientes que callo.
          Na camareyra mor sobre quem carregão e estribam as couzas de mais preço e importancia, como é a própria Pessoa da Princeza, e toda sua caza das portas adentro, também cuido se acharão alguns descuidos , e defeito, se bem buscarem, mas porque não pode ser que a V. A. sejam ignotos, me não entrometo nelles , com quanto tento muy grande magoa, e sentimento pela grande perda que a Princeza tem recebido por seus descuidos: foy grande desastre, e má ventura, não se achar quem ocupasse este seu lugar mais devidamente, e a meu ver, não muito acêrto trazer consigo tantos filhos, e Netos não tão bem doutrinados, como deviam de ser, com hos coais se occupa, e per ventura se aconselha.
          Dia de cinza vindo um Bispo para a poer à princeza, cheguei-me à senhora Camareira Mór, e pedi-lhe que se passasse a uma certa parte por dar logar à Princeza que avia de sair fora da cortina, e ao Bispo, não se moveo.
          Entrando o Bispo na tribuna, tornei-lhe a pedir que desse logar, respondeu-me com grande desdem, e em finta que não queria, e o mesmo sua Filha, e nisto era já o Bispo com nosco, e a Princeza fora da cortina, entonces o fez mal e per mal cabo, pareceo-me isto tão mal que me não pude ter que o não dissesse logo ao Embaixador de V. A.  e ao mordomo mór, que presentes erão, e ao Secretario que eu tenho por uns bons homens, que a Princeza traz em seu serviço, e mais abile pera todo bem fazer depois do Padre Frey Antonio seu confessor, se tivera saude.
          Quinta Feira vinte e quatro deste mez levantou-se a Princeza tarde, porque tomou o dia dantes huma purga, e como eu sempre trago ho temto nas Oras, porque não passem sem a Princeza ouvir Missa, mandei lhe dizer por Joana da Fonseca, que erão já as onze oras, e tres coartos de ora, porque assi era verdade, e dahy a pouco entrou para lá ho mordomo Mor ; coando me pareceo, que o coarto de ora seria casy gastado, entrei eu tambem, a achey o Mordomo Mor que estava esperando a Princeza de fora de fronte da porta, cheguei-me a elle, e mandei por Gomes Freire dizer à Princeza, que me desse S. A. licença para mandar começar a missa, porque era meyo dia, a isto levantou Dona Izabel de Mendonça a guarda porta, e em me vendo disse pera a Princeza, Senhora, está aqui Dom Christovam, e diz que são onze oras e trez coartos, e dizendo isto, arrebentou com rizo, porque parece, que tinhão já havido zombaria sobre o recado, que eu tinha por Joana da Fonseca mandado, coando vi o rizo tamanho, e tão piquena conta se fazer ainda agora de se passar ho tempo da Missa, respondi-lhe um pouco desentoado pera que me a Princeza ouvisse, que era mui boa cousa fazer-se zombaria de Deos, e dizendo esto, sahi-me pella porta fora, a Princeza me mandou logo recado, que se começasse a missa, e aasim se fez.
          Ho tesoureiro da Capela para dizer huma missa cantada, ou rezada he onestamente suficiente, e com coamto não sabe Latim, e pera o carrego, que tem, he huma das destemperadas e desatentadas Pessoas que vi, de sorte que tenho o maior trabalho do mundo em o sofrer, aconselhar, e temperar com os capelães, com os coais anda sempre em differenças sobre seus guisamentos, e outras cousas semelhantes porque querem tudo fazer ho que lhe vem à vontade dos moços da capela não sabe mandar se não trez pedras na mão, ainda que sejam homens barbados, pelo que às vezes se afastam do serviço quando mais são necessários, e assi da mesma sorte se á comigo com que algumas oras me vejo tão corrido, e envergonhado, que não sei parte de mim; pocos dias à, que ameaaçando ele perante mim perante a um moço da Capela, e jurando lhe pelos santos Evangelhos, que lho avia de pagar, porque suspeitou que me viera dizer de um pano distante que ele não queria dar, dizendo-lhe eu que não fosse tão solto, e que olhasse onde, e como falava. Lançou mão ás barbas em presença de muitos cantores, e capelães, e outragente, e disse-me que per aquelas isto não passasse assy muito tempo.
          Outras muitas couzas, asi dele, como de outra sorte poderia dizer, que merecem muita emenda, que calo, porque seria processo infinito dizê-las todas, como são as sangrias e purgas, que se dão à Princeza muy desnecessárias, e asentar-se Antonio de Melo no serão com as Damas, não ho fazendo cá, senão grandes, estando em pé, muitos condes, e outros homens da grão sorte zombando disto:  e pelas que mais em particular me a mim tocão lhe beijarei as mãos faze-lo asy, porque já, que Deos livrou dos perigos passados, e menos cabos, e afrontas vergonhosas, a que eu nunca fuy acustumado, as quais sofri, e dissimulei, e passei com a mais paciência, que pude, por não virem a praça; crendo que cumpria muto a serviço de V. A. fazê-lo aSim, não queria que me tornassem a tentar outra vez, porque poderia ser estar menos provido de paciencia, que os dias passados.
          Nosso Senhor a Vida e Rial Estado de V. A. guarde, e prospere por muitos infindos annos a seu Santo Serviço. Amen. Em Valhadolid aos vinte e nove de Abril de mil quinhentos quarenta e quatro = Dom Christovam de Castro.  (7)

Nota dos editores – 1) “Toponímia Covilhanense”, Câmara Municipal da Covilhã, 1982.
3) ANTT – PT-TT-CC/1/75/77
4) ANTT – PT-TT-CC/1/75/80
5) ANTT – PT-TT-CC/1/75/94
6) ANTT – PT-TT-CC/1/75/93

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