quarta-feira, 2 de julho de 2014

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XL

     Considerando que esta valiosa obra de Luiz Fernando Carvalho Dias se encontra esgotada, e embora seja de 1954, estamos a publicá-la por capítulos no nosso blogue. Pensamos ser importante para o estudo da implantação das manufacturas em Portugal.
     Se quisermos contextualizar o tema diremos que governava D. Pedro, cujo vedor da fazenda era o Conde da Ericeira. Economicamente Portugal vivia uma grave crise comercial que o mercantilismo /proteccionismo, muito em uso no século XVII europeu e também em Portugal, no 4º quartel do século, vai procurar resolver. Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador de Portugal em Paris, influenciado pelas ideias do ministro francês Colbert, escreveu em 1675 a obra “Sobre a Introdução das Artes no Reyno” e o Conde da Ericeira vai publicar legislação proteccionista muito importante, que também atinge a Covilhã.

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LUIZ FERNANDO DE CARVALHO DIAS






O S  L A N I F Í C I O S

NA  POLÍTICA  ECONÓMICA

DO   CONDE   DA   ERICEIRA



I








LISBOA   MCMLIV

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VI

EM VÉSPERAS DE METHUEN

A exposição da política económica do Conde da Ericeira e dos seus primeiros resultados, fundamentada na relação do seu mais directo colaborador, o Juiz Vilas Boas, obriga a explicar os factos que levaram os historiadores a desconhecer ou a menosprezar os seus efeitos.
Trata-se primeiramente do régio alvará que ressuscitou o regi­mento de 1573. Dele constam estes períodos:
“... considerando eu o muito que importa a meu serviço, e bem de meus Reinos, que os pannos que neles se obrão sejam feitos na conta e perfeição, que devem ter, por evitar os enganos e falsidades, com que até agora se fazião, em menos crédito, e reputação da fabrica delles, ao qual pre­juizo sou obriguado (a) acudir com maior razão no tempo presente, em que fui servido prohibir o uso dos panos es­trangeiros; e sendo informado que o Regimento, que o Senhor Rei D. Sebastião mandou dar à Fabrica dos Pannos deste Reino no anno de mil e quinhentos setenta e tres se não guardava, e que desta omissão procedia serem os ditos pannos mal obrados, e falsificados, assim na conta dos fios, e largura como na impropriedade das tintas, e em tudo o mais de que depende a sua verdadeira composição ... » (1).

Na verdade quem desprovido de outros elementos comparativos se debruçar sobre o texto pode ser levado a concluir que anteriormente a 1690, pouco ou nada se realizara de novo na fábrica dos lanifícios.
Tal doutrina poderia ainda reforçá-la, recuando quatro anos, a pragmática de 1686 quando afirma: 
«E porque tenho mandado dar nova forma às fábricas do Reino, para com ellas suprir o que fôr necessário a meus vassalos, prohibo que se não possa usar de nenhum género de pannos negros ou de côr, não sendo fabricados dentro do Reino ... ». (2).

D. Luís da Cunha

 Contudo, outra versão decorre de duas confissões bem conhecidas, a de D. Luiz da Cunha, mais tardia é certo, mas referente a 1677 (3), quando se gaba de ter entrado em Londres vestido de bom pano da Covilhã ou do Fundão e a da Memória de Vilas Boas, que glosa as fases principais da reforma do Conde da Ericeira.
Como conciliar as duas opiniões aparentemente contraditórias?
Muitas passagens dos documentos das Chancelarias e outras da mais variada proveniência não podem ser tomadas à letra, porque reproduzem quase completamente outros textos que lhes serviram de modelo. Bastava que no régio alvará de D. Sebastião que prolongava o Regimento, se fixasse como argumento da sua publícação a defi­ciência do fabrico dos panos, para que, no Regimento de D. Pedro, embora as circunstâncias de momento fossem outras, se reprodu­zisse a chapa (4).
O seu desconhecimento inibe-nos, porém, de lhe joeirar o con­teúdo pelo crivo da crítica e de o comparar ao alvará de 7 de Janeiro de 1690.
Porque não admitir, sem forçar a interpretação, reportarem-se o alvará e a pragmática de 1686 não à data precisa da publicação, mas a todo o período anterior em que progride a reforma do Conde da Ericeira?
Se lermos com atenção os documentos da época sobre lanifí­cios, em breve notaremos como uns falam de baetas e sarjas e outros de panos ou panos finos; ora não resta dúvida de que, muitas vezes, panos e panos finos constituem distintas espécies de tecidos, tão dis­tintas como as sarjas e as baetas.
Fácil é, pois, concluir que a reforma do Conde da Ericeira, des­crita na memória de Vilas Boas, se referia somente às sarjas e bae­tas. Assegurada a vitória sobre os tecidos ingleses desta qualidade, divergiu a luta para outros artigos menos perfeitos e de mais defi­ciente fabricação, os chamados droguetes.
À semelhança das sarjas e baetas também se fabricavam em Portugal antes da Reforma, mas estavam ainda longe de atingir a perfeição desejada. Foi a esta segunda fase da reforma que vieram abrir caminho o regimento e a pragmática, pois urgia que também o padrão de qualidade dos panos se elevasse ao nível alcançado pelas baetas e sarjas. Só assim a reforma empreendida podia vingar e a produção de tecidos do país satisfazer as necessidades do mercado e quiçá tentar bater os ingleses noutros mercados.

Como vai desenvolver-se a segunda fase da Reforma?
O seu iniciador, o Conde D. Luiz de Menezes agira à margem do Regimento de 1573, que há muito caíra no olvido. (5). Realista, prefe­ria agir directamente, fora de todos os obstáculos e barreiras, pois prezava a livre iniciativa. Para atingir o seu principal objectivo não precisou de matar a liberdade de que a indústria gozava embora as circunstâncias, pela urgência duma acção imediata, o obrigassem a operar à margem dela.
Quando, vergado ao peso duma existência de trabalho, Ericeira chegava tràgicamente ao fim dos seus dias, a reforma prosseguia, mas perdia a originalidade e arrimava-se ao bordão do regimento velho para encontrar a terra prometida que salvasse os panos das investidas da nova concorrência inglesa. E o alvará de D. Pedro II que ressuscita o Regimento vai mais longe: amplia-o, depois de es­clarecer que a má fabricação dos panos deriva de não se respeitar a conta dos fios e a largura das peças, da impropriedade das tintas e de tudo o mais da sua composição. Andavam ralos os panos, pouco encorpados e mais estreitos do que era norma, e as tintas não ofere­ciam garantia de consolidação, por defeito da matéria-prima.
As duas secções marcadas pela crítica eram a tecelagem e a tinturaria: as restantes não pediam reformação.
O Regimento de 1573 sofre por isso reajustamentos, circunscritos porém à polícia administrativa e à técnica; a estrutura económica não é atingida.
Vejamos quais foram as novidades.
A magistratura dos Juízes Conservadores tinha pelo menos 15 anos: viera do início da Reforma da Fábrica da Covilhã, como já acentuámos, noutro lugar. Desempenhou-a primeiramente o Juiz de Fora Gonçalo da Cunha Vilas Boas. Determinou-se que cabia exer­cê-la ao Juiz de Fora que mais vizinho ficasse da fábrica dos panos mas a norma cedeu logo à realidade e Vilas Boas funcionou, em detri­mento dos Juízes de Fora da Vila, até que coube ao licenciado João de Proença da Silva, recuperá-la, em 1696. (6).
Cingiu-se a competência do Conservador, na ordem hierárquica à devassa anual, em Janeiro, da actividade do Vedor, e na ordem ju­risdicional ao conhecimento e juízo, por apelação ou agravo das con­denações daquele, porém, quando o valor excedesse a alçada, daria os mesmos recursos para o juízo dos feitos da Fazenda. (7).
Os Vedores alargaram a função, como consta doutro capítulo, e de fiscais subiram a juízes do Regimento. Também as dísposições regulamentares agora fixadas não tardaram a ser revogadas. (8).
No momento da tosagem selava-se o pano, mas o costume intro­duzira uma variante fraudulenta: a selagem passara a fazer-se na amostra, como que para autenticar o padrão, e fugira da peça, com prejuízo do mercador. Ao Vedor cumpria agora corrigir o desvio interpretativo e selar o pano somente depois de tosado por inteiro. (9).
Já na Memória de Vilas Boas o problema da finura e da certeza do fíado preocupara os reformadores. As fiandeiras descuidavam a operação e defraudavam o fabricante quando fiavam só, com esmero, as voltas externas da maçaroca ou da canela. Devia o Vedor estar atento e condenar as transgressoras depois de queimar os arráteís falsificados. (10).
Prescreveu-se aos oficiais a denúncia dos defeitos encontrados na lã, no fio ou na fazenda que lhes viessem à mão para transformar, sob pena de incorrerem na culpa de falsários. (11). O encobrimento equi­parava-se assim à transgressão.
A espinza prejudicava, por vezes, a fazenda quando lhe quebrava os fios: aconselha-se, para o evitar, o uso da tesoura, menos preju­dicial no disfarce dos nós. (12).
Os tecidos corriam enfardados de fabricante a mercador e de mercador a mercador, à lei da confiança. Mas nem todos os trapeiros a mereciam. Para salvaguardar o bom nome do comércio, devia o prensador examinar a peça e avisar ao Vedor dos defeitos dela, para que o dono do pano corrigisse a factura ou se responsabilizasse pelos prejuízos. Jungia-se o prensador à responsabilidade, através da marca que impunha nas fazendas examinadas; actuava como um verdadeiro acondicionamento industrial, embora primitivo. (13).
Além das nódoas, manchas, farpas, e buracos apareciam notáveis diferenças entre a amostra e a peça. Impunha-se ao Vedor que além da amostra examinasse a peça até á cola, para avaliar as deprecia­ções que obrigatoriamente constariam dum escrito, cozido na sua parte externa. A falta de exame acarretava para o Vedor a perda do ofício e para os paneíros e mercadores a perda do pano. (14).
Os pentes constituem uma das peças essenciais do tear; integram a tecedura ou trama na urdidura ou barbim, constituindo o tecido. Se as puas do pente são poucas, a integração sai necessàriamente defeituosa. Este tipo de pente era conhecido pela denominação curio­sa de pente gargantão: contra ele se insurge a lei nova (15).
As alterações de 1690, num capítulo sobre tintas, proíbem que se lhes juntem cinzas, fungão, trovisco e outros ingredientes. Nenhuma falsificação é considerada mais grave do que esta; priva o transgres­sor reincidente do uso do ofício, o que não acontece com qualquer outra das transgressões. (16).
Facto singular! O Regimento não menciona as duas grandes inovações que trouxeram os ingleses à nossa indústria: a estambragem das lãs com penteação a quente e a técnica nova dos nós para a formação dos liços. O silêncio sobre a primeira poderia explicar-se pelo intuito de não se aplicar o regimento ao fabrico das baetas e sarjas e outros panos finos, se não fora depreender-se o contrário do seu texto.
Resumindo: os capítulos novos do Regimento tendem a acau­telar mais a boa fé, base do comércio, e a proteger os mercadores do que a beneficiar directamente o consumidor. A posição do interme­diário, na transacção por grosso ou na venda a retalho, mereceu todos os cuidados do legislador contra as fraudes dos maus oficiais ou dos trapeiros, sem escrúpulo. A conjuntura é bem diversa da época em que o artesão contactava directamente com o público. O mercador é agora o centro de toda a actividade fabril.
(Continua)

NOTAS DO CAPÍTULO VI
(1ª Parte)

     1 – COLL. CHRON. DA LEGISLAÇAO etc. citada. (1683-1702) - pago 213. 2 - ID. Id. pago 65.
2- ID. Id. pag. 65.
3- D. LUIZ DA CUNHA - Testamento Político.
4- Além da lição que nos ministra o Livro dos Ditados d'El=Rei D. Manuel, também um documento respeitante à Covilhã ilustra inteiramente a nossa opinião. Trata-se da provisão do Desejado, de 6 de Julho de 1570, outor­gando à Covilhã o privilégio de Vila Notável. O original desta provisão traz anexada uma certidão de igual privilégio à Víla de Montemór-o-Novo, certidão requerida pelo concelho da Covilhã para servir de norma ao seu privilégio, que veio à luz nos mesmos termos. Entre outras noticias refere esse documento que se tinha respeito a ser a dita Vila povoada de muitos fidalgos, cavaleiros e pessoas de nobre geração e da casa dos Reis destes reinos e acompanhada de outro muito povo, cerrada, e enobrecida de Igre­jas, templos e mosteiros e de muitos edificios e casas nobres. Pergunta-se até onde estes pormenores podem ser tomados à letra e tidos em conside­ração por ser patente, atravez d'outras fontes, a pobreza de arquitectura cívil da Covilhã.
5 - COLL. CHRON. DA LEGISLAÇãO - cit.a - Regimento dos Panos.
6 - ARQ. N. DA T. DO TOMBO - chanc. de D. Pedro 2.° Liv. 51 fols. 348 e  Liv. 26 fIs. 234.
Só as cartas de nomeação de João Proença e Silva nos certificam quando a judicatura da Conservatória das fábricas voltou a ser função do Juiz de Fora.
João de Proença nasceu na Lousã e foram seus pais Cipriano da Silva e Proença, da Vlla de Fontelo, da Comarca de Lamego e Maria d'Albuquerque, do lugar de Vilarinho, termo da Lousã. Era neto paterno de Domingos da Silva, de Armamar, e de Joana de Proença, de Fontelo; e materno de Tomé Pires e de Antónia d' Albuquerque, ambos de Vilarinho, da Comarca de Coimbra. O pai desempenhou as funções de meirinho da Ouvídoria de Montemór-o-Velho, e o avô materno era sapateiro. Formou-se em Cânones, como consta do livro de graduados de 1688-89, da Universidade de Coimbra. (ARQ. N. DA TORRE DO TOMBO - Leitura de Bachareis m. 15 nº 45). Despachado primeiramente para Juiz de Fora de Torres Novas, é transfe­rido para a Covilhã em 28 de Maio de 1696, e reconduzido em 22 de Outubro de 1700, para acabar de estabelecer a fábrica dos panos finos. Mais tarde, ocupa os lugares de Provedor dos Orfãos, etc. da Guarda, (Liv. 45 fols. 297 v); de Corregedor de Civel da Corte (Chanc." de D. João V, Liv. 33 fIs 252 v.) em 8 de Outubro de 1710; de Desembargador extravagante da Relação do Porto, em 24 de Setembro de 1717 (Id. - Liv.o 51 fIs. 136 v.); de Desem­bargador dos Agravos da mesma Relação em 16 de Setembro de 1718 (Id Liv. 125 fIs. 96) até ser aposentado, nesse cargo, em 12 de Agosto de 1742, Id. Liv. 103 fIs. 291 v.).
Proença e Silva está pois para a reforma da fábríca dos panos finos, como Vilas Boas para a fábrica de baetas e sarjas.
Eis a carta que no-lo atesta:
«Dom Pº. por graça de Deos Rey de Portugal E dos Algarves ec. faço saber a vos Juizes Vereadores Procuradores fidalgos cavaleiros escudeiros homens bons e Povo da Villa da Covilhã e a quaes quer outras Justiças a que esta minha Carta for mostrada E o conhesimento della pertençer que tendo conçideração ao muito que convem ao meu serviço que João de Proença e Silva acabe de estabelecer a fabríca de panos finos que nessa villa mandei assentar e haver servido o cargo que nessa dita Villa digo o Cargo de Juiz de fora della com bom procedimento de que deu boa Rezídencía Hej por bem fazer lhe merçe de o Reconduzir no mesmo lugar de Juiz de fora da Covilhã por tempo de tres annos E alem delles o mais que ouver por bem emquanto lhe nã mandar tomar rezídençia o qual elle servira com os poderes E alçada que leva por minha Provízão E com elle havera o orde­nado proes e precalços que lhe direitamente pertençerem e Portanto mando lhe obbedeçaís e cumpraes suas Sentenças Juizos E mandados, etc. etc .
 ..........................................................................................................................................................................Lº. 22' d'Outº 1700» Arq. N. da Torre do Tombo. Chanc.ª de D. Pedro 2º Livº. 26, fls 234.
7 -REGIMENTO DOS PANOS DE 1690, cit.º art.ºs· 97 e 98
8 - ID. art.º 99
9 - ID. art.º 100
10 - ID. art.º 101
11- ID. art.º 102
12 - ID. art.º 103
13-ID. art.º 104
14-ID. art.º 105
15-ID. art.º 106
16-ID. art.º 107 

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