quinta-feira, 29 de março de 2012

Covilhã - Invasões IX

Hoje publicamos um pequenino texto que não está datado, mas sabemos ter sido escrito em 1704, já que o Coronel Richards visitou Penamacor, Fundão e Covilhã no Outono daquele ano, durante a Guerra da Sucessão de Espanha. Esta é uma das várias guerras que se desenrolaram na zona fronteiriça e por isso em terrenos próximos do nosso palco – a Covilhã. Este confronto começa depois da morte (1700) de Carlos II de Espanha que não tinha  descendentes. Forma-se a Grande Aliança, entre a  Inglaterra, Províncias Unidas e Império, mais tarde também Portugal, que pretende impor o Arquiduque Carlos, Carlos III, como rei de Espanha. Esta posição não é aceite pela Espanha, França e inicialmente também Portugal, que querem Filipe (Duque de Anjou), neto de Luís XIV, como Filipe V.

O Coronel Richards é certamente um dos muitos militares ingleses que se encontram nesta zona e o Marquês, referido na carta, será o Marquês das Minas, António Luís de Sousa, nomeado governador das Armas da Beira em 1703. O ano de 1704 foi muito importante, porque nesse ano Filipe V acompanhou o exército franco-espanhol, entrou por Salvaterra do Extremo ocupando toda esta região passando por Segura, Penha Garcia, Idanha-a-Nova, Monsanto e Castelo Branco. Alguns destes recontros foram violentos e seguidos de saque.
Panorâmica raiana
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias

       O exército inimigo seguiu a caminho do Alentejo, onde várias povoações como Nisa e Portalegre se renderam. Contudo as vitórias de Filipe V estavam a chegar ao fim, pois os exércitos da Grande Aliança encontravam-se agora preparados para reconquistar as terras beiroas e pôr o inimigo em debandada. O  mês de Junho é decisivo para a retoma destas povoações, tendo sido Monsanto a aldeia que demorou mais tempo a ser reconquistada.

A povoação de Monsanto
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias
D. Pedro II e Carlos III vieram em festa até à Guarda, onde chegaram a 30 de Agosto, mas só se juntaram ao exército para o fim de Setembro.
     Esta guerra vai prosseguir, tendo 1706 sido o ano glorioso, pois o Marquês das Minas chegou a entrar em Madrid, onde Carlos III foi, por algum tempo, solenemente aclamado rei.
A Guerra da Sucessão de Espanha só termina  em 1713 e 1715, quando D. João V - o rei que sucedeu a D. Pedro II - assina o tratado de Utrecht, primeiro com a França e depois com a Espanha. Estes acordos puseram um ponto final ao poderio espanhol, selaram a França como senhora do continente europeu e a Inglaterra como senhora dos mares. A paz, para Portugal, significou o reatar de relações diplomáticas com os vários países e outras claúsulas, como a restituição de praças conquistadas, quer na Europa, quer na América, a norte e a sul do Brasil.

Imagens do original, correspondente ao Fundão e à Covilhã,
da carta do Coronel John Richards

Carta do Coronel John Richards. Diário da Campanha em Portugal, em 1704

Quarta e Quinta-Feira, 22 e 23 de Outubro, fiquei em Penamacor para me preparar para a minha viagem para Lisboa.
Sexta-feira, 24 de Outubro, tendo-me despedido do marquês (das Minas??) que foi esta manhã a Monsanto para visitar esse lugar com os engenheiros, suponho que para o fortificar, eu parti também saiu um dia de chuva muito excessiva (sic), de tal forma que tivemos grande trabalho em passar os pequenos rios que poucos dias antes estavam inteiramente secos. Era tarde quando cheguei ao Fundão tendo assim muita sorte por não ter ficado na rua. Fiquei aquartelado em casa do Dr. Francisco Chaves, um cristão-novo que se queixou muito do mal que era feito aos filhos de Israel, estando agora a realizar-se um auto de fé em Lisboa. É quase inacreditável ver a obstinação e a malícia desta gente, pois apesar da horrível perseguição que têm sofrido há quase 200 anos e de em público parecerem em palavras e obras ser cristãos e dos mais zelosos, todavia nunca se converterem, pois juntamente com os princípios da Religião cristã também absorvem eficazmente os da Lei mosaica, de forma que apenas o seu exterior é católico enquanto na realidade são judeus, ou melhor demónios, pois nem a Lei de Moisés nem qualquer outra até hoje professada pelo Homem pode sofrer tanta infame hipocrisia, muito menos a Igreja Católica os horríveis sacrilégios que esta gente comete, e por isso quando são descobertos e condenados por judaísmo, se eles abjuram pela primeira vez são perdoados, mas a segunda, se impenitentes são queimados vivos, se arrependidos são estrangulados primeiro e depois queimados. (1)
Sábado 25 de Outubro, continuando a chover todo este dia os almocreves julgaram impraticável prosseguir a nossa viagem e, por isso, ficámos quedos. Esta e a Covilhã são tidas como as melhores vilas da Beira, pois não só a região é muito rica e abundante mas elas também têm várias manufacturas e tentaram imitar o nosso pano inglês e, é possível que o tivessem conseguido, se os judeus, que eram os grandes promotores, não tivessem sido tomados pela Inquisição, e assim foram obrigados a desistir, apesar de terem levado vários dos nossos tecelões ingleses a vir para cá. (2)

     Carta encontrada no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias

    Notas dos editores – 1) As vilas referidas pelo Coronel Richards e outras fronteiriças, viveram intensamente o choque cristianismo/judaísmo, nem sempre se compreendendo ou respeitando. Através da nossa investigação vamos percebendo que os Judeus viveram uma situação de perseguição constante por parte do Tribunal do Santo Ofício e por isso uma vida religiosa dúbia, o que levou Richards a chamar-lhes, indevidamente, hipócritas e demónios. Sabemos que o mês de Outubro de 1704 foi muito pesado quanto a autos-de-fé realizados em Lisboa, na praça do Rossio: penitenciados 59 homens e 34 mulheres; relaxados em carne 1 homem e em estátua 3 homens e 2 mulheres. Enumeramos a seguir os da região da Covilhã que já publicámos nas Listas deste blogue e que saíram em auto público de 19/10/1704:
Simão Nunes Rios, x.n.,de 33 anos, homem de negócio, filho de André Nunes, rendeiro, natural e morador na Covilhã. (444)
Francisco Henriques Ferreira, x.n., de 55 anos, tintureiro, natural e morador na Covilhã.(445)
António Gomes Cáceres, x.n., de 61 anos, tratante, natural e morador na Covilhã.(446)
Pedro Rodrigues Henriques, x.n., tratante, de 32 anos, natural de S. Vicente da Beira, morador na Covilhã.(447)
Pedro Lopes Henriques, x.n., clérigo in minoribus, de 26 anos, filho de Simão Lopes Samude, médico, natural e morador na cidade de Lisboa, cárcere e hábito perpétuo. (449)
          António Gomes Cáceres, x.n., de 22 anos, solteiro, filho de António Gomes de Cáceres, tratante, que vai na lista, natural e morador na Covilhã. (452)
          João Mendes da Cunha, x.n., de 36 anos, tratante, natural do Fundão, morador em Lisboa. (453)
Pedro Lopes Henriques, x.n., de 35 anos, de alcunha Arroja, solteiro, mercador, natural do Fundão, morador em Lisboa. (454)
          D. Hierónima Henriques de Chaves, x.n., natural do Fundão, moradora em Lisboa, casada com Gaspar Lopes Henriques, médico.(455)
          Domingas Henriques, x.n., de 70 anos, natural e moradora na Covilhã, viúva de Simão Fernandes Lousada, mercador. (456)
Maria Henriques, x.n., de 28 anos, natural da Covilhã, moradora em Lisboa, viúva de Paulo Mendes, ourives de ouro. (457)
Maria Henriques, x.n., de 20 anos, natural da Covilhã, moradora em S. Vicente da Beira, casada com Duarte Rodrigues da Costa, tratante de panos. (458)
          Leonor Rodrigues, x.n., de 51 anos, natural da Guarda e moradora na Covilhã, viúva de Manuel Dias Monsanto.(459)
          Diogo Rodrigues Lopes, x.n., de 40 anos, requerente de causas, natural da Covilhã, morador em Lisboa, filho de Jorge Rodrigues, mercador e de Isabel Lopes, viúvo de Violante Rodrigues.(460)
          Branca Rodrigues, x.n., de 26 anos, solteira, natural e morador em Lisboa, filha de Diogo Rodrigues Lopes, mercador, natural da Covilhã  e de Violante Rodrigues, neta paterna de Jorge Rodrigues, mercador e de Isabel Lopes. (461)
          Álvaro Mendes, x.n., de 26 anos, solteiro, natural de Monsanto, morador em Setúbal, filho de Manuel Mendes, natural do Fundão  e de Isabel Rodrigues, natural de Monsanto. (448)
2) A Covilhã e o Fundão tinham tradição manufactureira, muito relacionada com as Ribeiras e com a pastorícia. O rei D. Pedro II, no século XVII, estimulou esta produção, embora em 1703 tenha sido assinado com a Inglaterra o Tratado de Metween. Os Judeus contribuiram para este desenvolvimento, porque além de mercadores, também eram produtores (industriais).

Fontes - Nota deixada pelo investigador: Cartas do Coronel John Richards
Diários e cartas etc do Coronel John Richards (1704 - 1710).  British Museum, Col. Stowe 466/7 e 8. Vid. Tb. 470, 472, 474, 475 e 481 - A colecção dos Richards vai de 447 a 481, sendo a da Covilhã 467.
"História de Portugal”, direcção de Damião Peres, Volume VI, Portucalense Editora L.da, Barcelos, 1934.
Mendonça, José Lourenço D. de e Moreira, António Joaquim, "História da Inquisição em Portugal", Círculo de Leitores, 1980


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